Abstract
Starting from the work Think of Jazz by Jesus Santandreu, presented by the Wind Ensemble of the Escola Superior de Musica de Lisboa in its thematic program Jazzy Winds IV. This article aims to demonstrate the importance of rhythmic relationships in the work and how they can be approached in the conductor's performative perspective.
Brief reflections on the issues associated with the practice of a more jazzy language by musicians from the classical area and interpretive aspects will be addressed as a challenge for the conductor, in a close relationship with the score of a work.
Keywords: symphonic band, Jazz, Jesus Santandreu, rhythmic relations, number 5.
A obra Think of Jazz – Concert for Jazz Sextet & Symphonic Band de Jesus Santandreu[1] teve a sua estreia em Portugal no concerto Jazzy Winds IV, realizado pela Orquestra de Sopros da Escola Superior de Música de Lisboa a 31 de janeiro e 1 de fevereiro de 2020, no auditório Vianna da Motta da referida escola.
Como sugere o título desse concerto, as obras que o compõem têm uma ligação com o Jazz ou com linguagens com afinidades a este.
Um dos objectivos destes programas temáticos é promover a música para orquestra de sopros escrita em torno do universo do Third Stream sugerido por Gunther Schuller[2], que podemos definir, de forma muito sucinta, como a fusão das características de duas vias: a música erudita e o Jazz, criando-se assim uma “terceira via”.
Esta nova via levanta algumas questões ao nível da interpretação no sentido em que cada uma das áreas que a constituem, tem regras ou hábitos interpretativos distintos. Algumas dessas questões têm sido alvo de reflexão por parte de músicos que tiveram a sua formação na convencionalmente chamada música erudita e no Jazz.
Santandreu, sendo um desses músicos, terá reflectido sobre estas questões, uma vez que, na sua nota de programa[3], demonstra uma preocupação em manter um certo equilíbrio performativo em Think of Jazz:
...Esta obra apresenta uma forte influência do Hard Bop, presente em toda ela. A parte orquestral tem um nível de dificuldade médio e é escrita numa linguagem académica tradicional, facilmente compreensível para os intérpretes que não estão muito familiarizados com o jazz, no entanto requer um sexteto de jazz com músicos profissionais de jazz, solistas experientes e uma boa secção rítmica. ...
Esta falta de familiaridade com o Jazz e a sua inclusão no processo de formação dos músicos dos séc. XXI, é um dos aspectos que tem interessado alguns intérpretes, que sobre isso têm escrito.
Paulo Gaspar e Eduardo Lopes (2011, p.153) no seu artigo “Práticas Jazzísticas no Ensino do Clarinete” sugerem que a convivência entre músicos de distintas tradições pode ajudar a essas especificidades interpretativas e enriquecer a formação de cada um deles. Tendo como referência Benny Goodman e o seu método e clarinete publicado em 1942, referem a importância que a sua metodologia tem na incorporação da improvisação, uma prática pouco habitual aos músicos da vertente erudita.
No domínio do saxofone, Mário Marques (2013) abordou também a problemática da interpretação na música de Daniel Schnyder, referindo os desafios que são colocados aos saxofonistas contemporâneos, quando confrontados com obras de diversos estilos musicais:
É um facto que a música de fusão é uma realidade implantada e que ambos os géneros necessitam da correta abordagem técnico/interpretativa ao estilo, mas não é claro para o instrumentista qual a abordagem linguístico/interpretativa a utilizar em determinado momento no decorrer da obra. O modo como se executam frases, motivos rítmicos, acentuações ou/e efeitos vários está por clarificar, tal como a agógica nas frases ou a sua ausência.
Este é um dos aspectos bem presentes na obra Think of Jazz, na qual Santandreu usa, como referiu, uma linguagem académica tradicional. No entanto, a presença de indicações como even 8ths[4] e Swing[5] deixam antever alguns desafios na interpretação da obra.
Também na área da direcção, as questões interpretativas têm sido alvo de reflexão por parte de diversos maestros, alguns deles com ligações ao universo do Jazz e às orquestras de sopros.
É o caso de Gunther Schuller[6] (1997), já referido anteriormente pela sua associação ao termo Third Stream, que, no seu livro The Compleat Conductor, partilha a sua visão do que deve ser a interpretação de uma obra.
Schuller avisa que algumas das suas declarações serão polémicas e bastante contestadas, já que a sua abordagem da interpretação assenta num total respeito pela informação escrita da partitura e critica, nomeando alguns maestros, a forma com muitos desrespeitam a mesma fazendo uso de um exibicionismo técnico que pouco ou nada tem a ver com as informações dadas pelo compositor. Para marcar a sua posição, Schuller recorre a algumas citações de destacados compositores como Ravel: “Il ne faut pas interpreter ma musique, il faut le realiser” (Schuller, 1997, p.7).
Muitos outros autores seriam dignos de menção. No entanto, o objectivo deste artigo não é desenvolver uma revisão bibliográfica sobre este domínio da interpretação, mas antes reflectir sobre os desafios que a obra Think of Jazz coloca a esse nível e partilhar uma estratégia que possa ajudar a tornar a interpretação da obra mais fundamentada e coerente com a partitura elaborada pelo compositor. Nesse sentido, partiremos de uma abordagem que se coaduna com as recomendações de Schuller, ou seja, uma leitura cuidada e respeitosa da partitura, tentando recriar, humildemente, as intenções do compositor.
A forma como diferentes maestros abordam o estudo da partitura é também um aspecto que poderá ter influência na interpretação final de uma obra. Na área da direcção de orquestra de sopros existem dois livros que se recomendam, quer pelo seu conteúdo e organização, quer por terem sido escritos por maestros de referência dessa área.
Felix Hauswirth[7] partilha a sua metodologia de trabalho em Étude de la Partition, onde exemplifica de forma prática os diversos aspectos a ter em conta na preparação de uma obra. Frank Battisti & Robert Garofalo[8] apresentam uma abordagem que tem por base 4 grandes etapas que vão do contexto em que foi escrita, percorrendo os aspectos de leitura, análise e interpretação. Em ambos os livros, assim como em Schuller (1997, p.12), compreendemos a importância da partitura como ponto de partida preferencial para uma realização (termo que Schuller prefere usar) da obra, por oposição a um modelo que muitas vezes assenta em “copiar” interpretações registadas em CD ou vídeo, perpetuando eventuais leituras poucos cuidadas e aprofundadas das obras.
Num primeiro contacto com a partitura de Think of Jazz, a capa fornece o seu título e alguns dados relacionados com a encomenda da obra, neste caso realizada pela organização da Com sona L´ ESO, fornecendo ainda um elemento figurativo que remete para um aspecto rítmico ao nível interpretativo:
Fig. 1 – Elemento da capa de Think of Jazz
No contexto do Jazz, poderíamos dizer que esta é uma informação básica e quase incontornável. No entanto, não deixa de ser um elemento visual que coloca bastante ênfase no aspecto rítmico. O compositor poderia ter optado por uma associação visual de âmbito mais harmónico, um domínio também muito importante neste universo.
Na contracapa é apresentada a instrumentação usada na obra, assim como um esclarecimento da informação contida no título, que indica a presença de um Jazz Sextet e uma Symphonic Band.[9] Ficamos a saber que esse sexteto é constituído por 3 instrumentos de sopro - trompete, saxofone tenor e trombone (que no caso da estreia em Portugal foi substituído por saxofone barítono, com a devida autorização do compositor)-, e que a secção rítmica é constituída por piano, contrabaixo e bateria.
A orquestra exibe uma instrumentação que podemos considerar estandardizada na área do jazz, com pequenas adendas, tais como a existência de um 2º clarinete baixo e de um fliscorne. O naipe da percussão é bastante completo, sendo composto por uma parte de tímpanos e 4 de percussão.
Após a contracapa, seguem-se 76 páginas que dão origem a um percurso de 22 minutos com forte influência do Hard Bop[10], como nos revela o próprio Santandreu na nota de programa já referida anteriormente. Refere também que grande parte do material da obra desenvolve-se a partir de do intervalo de 5ª.
Veremos mais adiante que o número 5 parece ter especial relevância estrutural nesta obra.[11]
Sendo a coesão rítmica da obra o objectivo principal deste estudo, interessa-nos perceber como é gerido o movimento ao longo da mesma. Segundo LaRue (2007, p.67) o ritmo é um fenómeno estratificado e surge, num sentido mais amplo, das mudanças que ocorrem entre texturas sonoras, harmonias, melodias, estando assim intimamente relacionado com o movimento gerado pelas mesmas.
Observando a partitura de Think of Jazz, encontramos uma considerável variedade de informação ao nível das mudanças acima referidas, de modo especial, as que se referem às mudanças de tempo e carácter da música:
Carácter |
Métrica |
M. Metrónomo |
compassos |
Observações |
Brilhante |
4/4 |
♩ = 108 |
1 - 22 |
|
Tempo Giusto |
" |
♩ = 108 |
23 - 50 |
|
Swing |
2/2 |
♩ = 108 |
51 - 69 |
|
Inquieto |
" |
♩ = 108 even 8ths |
70 - 95 |
|
Imponente |
4/4 |
♩ = 108 |
96 - 115 |
|
Spirituale |
3/4 |
♩ = 108 |
116 - 234 |
Breve solo piano c.204-227 |
--- |
-- |
-- |
235 |
Drum Set solo (aprox. 60'') |
Feroce |
4/4 |
♩ = 108 even 8ths |
236 - 250 |
|
" |
5/4 |
♩ = 180 |
251 - 254 |
5/4 (2 c.) + 4/4 (2 c.) |
Swing |
4/4 |
♩ = 180 |
255 - 286 |
|
“ |
" |
" |
287 - 322 |
Tenor solo |
" |
" |
" |
323 – 358 |
Trombone Solo |
--- |
" |
♩ = 120 |
359 - 360 |
“ |
Minaccioso |
" |
♩ = 120 |
361 - 399 |
|
--- |
--- |
--- |
400 |
Trompete solo (aprox. 30'') |
Intimo |
4/4 |
♩ = 90 |
401 - 424 |
|
" |
" |
" |
425 – 448 |
Trompete solo (até c.441) |
Swing |
" |
♩ = 180 |
449 - 472 |
|
Deciso |
5/4 |
♩ = 180 even 8ths |
473 - 480 |
5/4 (2c.) + 4/4 (1c.) + 5/4 (2 c.) + 2/4 (1c.) |
Misterioso |
4/4 |
♩ = 180 |
481 - 482 |
|
" |
" |
♩ = 120 |
483 - 500 |
|
" |
" |
♩ = 90 |
501 - 512 |
4/4(3c.) + 3/4(1c.) + 4/4(3c.) + 3/4 (1c.) |
" |
♩ = 108 |
513 - 519 |
||
Come Prima |
" |
" |
520 - 523 |
|
Tempo Giusto |
" |
" |
524 - 569 |
|
Enfactico |
" |
" |
570 - 581 |
|
Brilhante |
" |
" |
582 - 605 |
Tabela 1 – Indicações de carácter e tempo ao longo da obra Think of Jazz
Ao observar a tabela 1 e através da visualização e escuta do vídeo que acompanha este ensaio, podemos concluir que o percurso musical da obra aparenta ser um ciclo que se fecha de forma muita idêntica à que começou. O movimento Brilhante inicial (aos 1:10) é o mesmo que se inicia no c.582 (aos 21:28) e que encerra a obra com uma breve coda final.
Um outro elemento observável e audível é o retorno aos movimentos de Swing. Encontramos dois tipos de tempos distintos associados ao mesmo: = 108 e ♩ = 180. No caso do segundo, vemos que tem uma primeira aparição no c.255 (aos 10:06), reencontrando o mesmo no c.449 (aos 16:50), com uma breve introdução da secção rítmica, e no c.457 (aos 17:00), com o tema no trio de solistas.
Estes dois momentos de Swing têm entre si o solo de trompete que se inicia no c.400 (aos 13:47), o qual se situa sensivelmente a meio da obra (se pensarmos na duração total de cerca de 22 minutos). Tendo isso em conta, podemos sugerir que Santandreu usa a secção do solo de trompete como uma espécie de eixo, a partir do qual a obra inicia um processo de retorno até ao Brilhante inicial. Tendo em conta não existir qualquer paragem neste percurso musical (apenas momentos em que o fluxo de movimento parece fazer uma breve suspensão - no solo de bateria e na cadência do trompete), surge a pergunta: como é sustentada a coerência em toda esta arquitectura formal?
Mais uma vez a tabela 1 e a audição da obra dão-nos uma possível resposta. Através da tabela, observamos que existem algumas indicações de tempo bastante recorrentes: ♩ e = 108, ♩ = 90, 120 e 180, e, ao ouvirmos a obra, somos confrontados com um movimento rítmico que parece fluir sem quebras aparentes. Considerando estes factores, podemos dizer que as relações rítmicas são um importante elemento agregador da obra.
Ao longo da partitura existem diversos desafios rítmicos que devem ser analisados e tratados com rigor. São eles que permitem que o movimento rítmico, possa fluir com coerência e uniformidade.
Referimos anteriormente que o número 5 possui algum relevo estrutural na obra. O próprio compositor referiu que grande parte do material utilizado é construído com base no intervalo de 5ª. Encontramos na obra 5 momentos em que a fluidez rítmica é conseguida através de um processo de modulação métrica[12]. Veremos que, em algumas situações, figuras rítmicas de 5 notas permitem criar os valores comuns para que as modulações aconteçam.
A tabela 2 mostra onde ocorrem essas modulações e quais os processos rítmicos utilizados nas mesmas:
compassos | Mudança de B.P.M [13] | Figuras usadas/ sugeridas no processo de modulação |
250 - 251 | ♩ = 108 - ♩ = 180 |
108 x 5 = 540 / 3 = 180 |
358 - 359 | ♩ = 180 - ♩ = 120 |
90 / 3 = 30 x 4 = 120 |
482 - 483 | ♩ = 180 - ♩ = 120 |
180 x 2 = 360 / 3 = 120 |
500 - 501 | ♩ = 120 - ♩ = 90 |
120 x 3 = 360 / 4 = 90 |
512 - 513 | ♩ = 90 - ♩ = 108 |
90 x 6 = 540 / 5 = 108 |
Tabela 2 – Modulações métricas em Think of Jazz
Chamamos a atenção para a última coluna da tabela, na qual são apresentadas as figuras usadas/ sugeridas no processo de modulação. Aqui entra a perspectiva do maestro. Os dados apresentados resultam de uma análise que pressupõe uma leitura pessoal. Por essa razão faz-se referência a figuras sugeridas, além daquelas que são visíveis na partitura.
Em algumas situações, nomeadamente na 2ª modulação métrica, a partitura não apresenta os valores rítmicos que permitem fazer a modulação, tendo os mesmos que ser audiados[14] em simultâneo com a notação existente na partitura e o som produzido nesse momento.
Este constitui um dos desafios do maestro, que tem a responsabilidade de, através de uma análise cuidada, decidir como irá liderar este processo de transição rítmica. Reforçamos esta ideia de liderança no sentido em que o maestro tem a vantagem (mas também a responsabilidade) de ter acesso a toda a informação da partitura, o que não acontece com os músicos da orquestra, que apenas têm acesso à sua parte.
Seria utópico achar que o maestro controla totalmente toda a informação e que os músicos são meros reprodutores da parte que lhes é destinada. A liderança é partilhada num processo que exige respeito e confiança. Respeito, porque em muitas situações os músicos estarão em condições mais privilegiadas de controlar alguma da informação da partitura, a qual será essencial para o desempenho de todos, incluindo o do maestro. Confiança, que deve ser mútua, uma vez que sem ela as informações transmitidas pelos músicos e maestro não poderão contribuir para uma realização completa da obra.
Nesse sentido, para cada uma das modulações métricas, o maestro deverá avaliar qual a melhor forma de transmitir a informação da partitura, que instrumentos ou naipes podem contribuir para clarificar essa informação e, por último, decidir qual o peso da sua liderança em cada situação, tendo sempre em consideração os referidos aspectos de respeito e confiança.
Vejamos quais foram as opções tomadas pelo maestro (simultaneamente o autor do presente artigo), que poderão, eventualmente, servir em futuras apresentações da obras.
Na 1ª modulação (aos 9:57) a figura rítmica existente no 2º tempo do c.250, nas lâminas do naipe da percussão, é o elemento de ligação usado para passar para a nova pulsação do c.251. A velocidade das 3 últimas semicolcheias do c. 250 é precisamente a mesma das tercinas de colcheia do c.251. O próprio compositor coloca acentuações na “quintina” (2+3), criando assim uma ligação ainda mais forte e uniforme com as tercinas seguintes.
A 2ª modulação (aos 12:17) torna-se mais desafiante pela razão já citada anteriormente: as figuras necessárias para fazer a modulação não fazem parte da notação da partitura. Acresce a isso o facto de estarmos no final do solo de trombone (na presente gravação, do saxofone barítono) sob o qual o maestro ouve a seguinte progressão rítmica:
Fig. 2 - Bateria - c. 355 a 360
A transição rítmica é realizada no c. 358, através da audiação da 1ª figura rítmica (uma tercina de 3 mínimas) apresentada na tabela 2, em que o valor de cada uma das mínimas corresponde ao valor de cada semínima do c. 359. A escolha desta figura rítmica para realizar a transição prende-se com o facto de toda a secção anterior estar a ser dirigida em compasso 2/2 ( = 90) em vez de uma marcação de 4/4 (♩ = 180). Consideramos que se torna mais fácil para a orquestra partir de um gesto mais lento e progredir para um mais rápido, em vez do inverso.
Em termos de realização, esta 2ª modulação será porventura a que coloca mais desafios, enfatizando a importância da relação de liderança entre maestro e orquestra. Nesta parte da obra, o maestro terá de confiar na capacidade dos músicos em controlar a progressão rítmica da fig.2. Por sua vez, os músicos terão de se apoiar no maestro relativamente à audiação da figura rítmica que permite fazer a modulação, o que permitirá que todos possam articular sincronizados o ritmo dos c.359-360. É interessante observar que, nos compassos referidos, o baterista, músico que geralmente conduz o ritmo nos agrupamentos de jazz, é aquele que terá de se apoiar mais nas indicações do maestro, uma vez estar a improvisar sobre a progressão rítmica, tendo de se sincronizar com toda a orquestra.
Na 3ª modulação (aos 17:37), Santandreu recorre de novo às acentuações para facilitar a transição rítmica. Neste caso são os fagotes e clarinetes baixos que realizam este processo de modulação através do valor da colcheia do c. 482, que passa a ser o valor de cada colcheia de tercina do c. 483.
Antes de passarmos à modulação seguinte, vale a pena realçar a forma como o compositor gere a secção que se desenvolve após a 3ª modulação. Uma vez mais, o ritmo assume um papel estrutural, criando uma intrincada textura contrapontística, fruto de uma transformação rítmica da frase dos fagotes no c. 481. São utilizadas 3 espécies de valores para a mesma:
Instrumentos |
Construção rítmica da frase |
Fagotes + Cl. Baixos |
|
Tubas + Euph. + Sx. Bar. |
|
Piccolo + Flautas |
Tabela 3 – Frases usadas entre c. 483 – 508, com função estrutural no contraponto.
Sobre essa textura contrapontística, surgem (c.486) os três solistas e piano que apresentam uma outra textura melódica, numa harmonização em bloco, a qual é contraposta com uma outra linha melódica de valores mais longos pelas trompas e saxofones altos. É neste contexto que surge a 4ª modulação (aos 18:23), que recorre também à frase desenvolvida no contraponto anterior.
Através do mesmo processo utilizado na modulação anterior, são desta vez os trombones, bombardinos, tubas e woodblocks, que fazem a transição para uma nova pulsação, na qual que o valor da colcheia de tercina do c.500 passa a ser o valor da semicolcheia do c.501.
A 5ª e última modulação serve para voltar a colocar o movimento da obra no seu tempo original de ♩ = 108.
Para esta modulação que se inicia no c. 512 (aos 18:52), os instrumentos que servem de referência ao maestro são, numa primeira fase, as trompas e trompetes, e que mais uma vez utilizam uma figura rítmica de 5 notas (número estrutural da obra), sendo que no c. 512 o foco dirige-se para a parte de tímpanos que faz a transição para o c.513.
Finalizando esta reflexão sobre a importância das relações rítmicas em Think of Jazz, podemos concluir que só será possível criar uma interpretação coerente, adoptando uma postura de respeito e rigor pelas indicações de metrónomo de Santandreu. Estas constituem os pilares de uma elaborada construção rítmica, que gera um movimento contínuo e que é sustentado por relações mais ou menos complexas.
Não queremos deixar aqui implícita a ideia de que existe um controlo absoluto da velocidade da pulsação por parte do maestro. Temos a consciência de que pequenas alterações relativamente aos andamentos sugeridos pelos compositores não serão problemáticas, podendo até ser apropriadas em situações nas quais a acústica dos espaços ou outros factores a isso exijam. No entanto, conforme afirma Schuller (1997, p.33), os maestros que optam por recorrer a andamentos muito distintos daqueles sugeridos pelo compositor, poderão colocar em risco a fluidez da obra, a sua estrutura, e algumas das características das melodias inicialmente idealizadas.
Como referimos anteriormente, esta reflexão é fruto de uma visão pessoal enquanto maestro. No entanto, consideramos que será muito provável que Santandreu tenha pensado nos detalhes aqui descritos e em muitos outros que não foram objecto de reflexão neste trabalho.
Correndo o risco de elevar o nº5 a um estatuto exagerado, não podemos deixar de reforçar a sua visível presença, quer do ponto de vista melódico, quer da sua relevância ao nível rítmico e estrutural. Como vimos, é possível identificar 5 modulações métricas em toda a obra. Algumas delas utilizam figuras de 5 notas. A acordo com as frases que constam da tabela 3, algumas acentuações geram ciclos de 5. A secção que se desenvolve após a 3ª modulação utiliza 5 frases em contraponto: as 3 da tabela 3, a do trio de solistas com piano, e a dos saxofones altos e trompas.
Podemos concluir que Santandreu tem uma evidente atracção, consciente ou não, por esse número que atravessa Think of Jazz.
Notas
[1] Jesus Santandreu (1971) Arranjador e compositor especialista em diferentes agrupamentos, como música de câmara, big band, orquestra sinfónica e orquestra de sopros. Saxofonista de jazz. As suas obras sinfónicas tiveram estreias e apresentações no Brasil, EUA, Portugal, Alemanha, Colômbia, China, Taiwan e Espanha. Experiência como professor em várias universidades europeias, norte-americanas, asiáticas e latino-americanas.
Actualmente reside em Valência. É professor de improvisação no Sedajazz e professor interino de saxofone e arranjos no Conservatório Superior Joaquín Rodrigo, em Valência. Diretor da bigband do CSMV.
Em 2000 licenciou-se em Jazz (Magna Cum Laude) no Berklee College of Music, Boston, Massachusetts e em 2014 foi-lhe atribuído o grau de Mestre em Artes, Direcção Sinfónica pela Middle Tennessee State University, Murfreesboro, Tennessee
[2] Schuller, G. (1980). “Third Stream” in Sadie, S. (Ed.), The New Grove Dictionary of Music and Musicians, (vol. 18, p.773). London: Macmillan Publishers Limited.
[3] Notas de programas escritas e cedidas pelo compositor para serem incluídas no programa de sala do concerto Jazzy Winds IV.
[4] Termo usado no Jazz para referir que as colcheias devem ser interpretados com valor igual.
[5] Uma característica interpretativa associada aos músicos de Jazz e que segundo alguns autores tem a sua origem num fenómeno rítmico de conflito entre uma pulsação existente e as suas múltiplas variações de tempo e acentuações. Robinson, J. B. “Swing”, in The New Grove Dictionary of Jazz edited by Barry Kernfeld (London, Macmillan Publishers Limited., 1994), p.1176.
[6] Gunter Schuller, trabalhou como trompista com Miles Davis e Gil Evans. É autor de várias obras para sopros. Ver https://www.windrep.org/Gunther_Schuller. Acedido em 2 junho 2020. No contexto do Third Stream é particularmente relevante a sua obra Blue Dawn into White Heat, que segundo o compositor é uma das poucas para orquestra de sopros em que escreve num estilo Jazz. A obra pode ser ouvida em https://www.youtube.com/watch?v=-TA6bUuDI4o. Acedido em 2 junho 2020.
[7] Hauswirth, F. (2005). Étude de la Partition. Adiswil, Suisse: Ruh Musik AG.
[8] Battisti, Fr. & Garofalo, R. (1990). Guide to Score Study for The Wind Band Conductor. USA: Meredith Music Publications.
[9] Alguns autores consideram que esta terminologia implica habitualmente a presença de cordas, nomeadamente violoncelos e contrabaixos, uma tradição muito visível em Espanha, de modo especial na região de Valência de onde é oriundo o compositor. No entanto, essa não é a opção de Jesus Santandreu, que nesta obra não usa esses instrumentos mas mantêm a terminologia numa postura mais próxima da usada nos EUA. Ver: Cipolla, FR. J. & Hunberger, D. (1994). The Wind Ensemble and Its Repertoire. New York: University of Rochester Press. (p.34). Ao longo do presente artigo, usaremos o termo orquestra para nos referimos ao grupo que acompanha o sexteto de solistas.
[10] Para uma breve descrição desta corrente do Jazz ver: Gridley, M. C. “Hard Bop”, in Kernfeld, B. (Ed.). The New Grove Dictionary of Jazz, (pp. 481-482). London: Macmillan Publishers Limited.
[11] Numa outra obra de Santandreu, Sortes Diabolorum, também para orquestra de sopros, é também muito relevante o número 5, quer pela sua associação aos 5 dedos da mão humana, que ilustra a capa da partitura, mas também pelas proporções e relações que gera dentro da obra.
[12] Da mesma forma que nas modulações harmónicas se encontram acordes cuja constituição permite ligar tonalidades próximas ou menos próximas, nas modulações rítmicas encontram-se valores de duração que permitem fazer ligação a tempos de referência distintos.
[13] B.P.M – Batimentos por minuto.
[14] A audiação foi um conceito introduzido pelo contrabaixista e pedagogo Edwin Gordon e pode ser resumido como a capacidade de escutar um acontecimento musical, sem o mesmo estar a acontecer. Ver: Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (pp. 15-40).
Referências
Battisti, Fr. & Garofalo, R. (1990). Guide to Score Study for The Wind Band Conductor. USA: Meredith Music Publications.
Cipolla, FR. J. & Hunberger, D. (1994). The Wind Ensemble and Its Repertoire. New York: University of Rochester Press. (p.34).
Gaspar, P. & Lopes, E. (2011). “Práticas Jazzísticas no Ensino do Clarinete”, in Lopes, E. (Ed.). Perspectivando o Ensino do Instrumento Musical no Séc. XXI, (p.153). Évora: Fundação Luís de Molina.
Gordon, E. E. (2000). Teoria da Aprendizagem Musical. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (pp. 15-40).
Gridley, M. C. (1994). “Hard Bop”, in Kernfeld, B. (Ed.). The New Grove Dictionary of Jazz, (pp. 481-482). London: Macmillan Publishers Limited.
Hauswirth, F. (2005). Étude de la Partition. Adiswil, Suisse: Ruh Musik AG.
LaRue, J. (2007). Análisis Del Estilo Musical. Madrid: Mundimúsica Ediciones, S.L. de la tradución y la edición em lengua castellana.
Robinson, J. B. (1994). “Swing”, in Kernfeld, B. (Ed.). The New Grove Dictionary of Jazz, (p.1176). London: Macmillan Publishers Limited.
Schuller, G. (1980). “Third Stream” in Sadie, S. (Ed.), The New Grove Dictionary of Music and Musicians, (vol. 18, p.773). London: Macmillan Publishers Limited.
Schuller, G. (1997). The Compleat Conductor. New York: Oxford Universtiy Press.