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  • Título: Ilusão Rítmica: Composição, Performance e Improvisação no Contexto do Jazz Contemporâneo
  • Autor: Vasco Pimentel
  • Músicos: Vasco Pimentel: piano; Rodrigo Correia: contrabaixo ; Diogo Alexandre: bateria
  • Data do evento: quinta, 19 dezembro 2019
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Abstract

Através do presente trabalho pretendo debruçar-me sobre o conceito de ilusão rítmica, aplicado à composição e improvisação no contexto do jazz e da música improvisada. Em traços gerais, defino ilusão rítmica como a falsa percepção da pulsação, métrica, andamento ou qualquer outra componente rítmica de uma peça por parte de quem a ouve. 

Esta investigação encontra-se dividida em duas partes: um breve enquadramento do conceito de ilusão rítmica e a análise detalhada de 3 composições criadas para este projecto artístico e da aplicabilidade dos mecanismos de ilusão rítmica nas mesmas.
O processo de pesquisa incluiu a análise de obras literárias sobre ritmo na música e também sobre a história do jazz, assim como a audição de discos de jazz nos quais é desenvolvido o conceito de ilusão rítmica.
Como resultado da pesquisa efectuada surgiram composições originais para piano, contrabaixo e bateria, através das quais pretendo explorar novas abordagens rítmicas não só em contexto composicional como também em situação de performance e improvisação.

Keywors: rhythm, composition, improvisation, contemporary jazz, piano, trio

 

1. Introdução

Através do presente trabalho pretendo debruçar-me sobre o conceito de ilusão rítmica, aplicado à composição e improvisação no contexto do jazz e da música improvisada. Em traços gerais, defino ilusão rítmica como a falsa percepção da pulsação, métrica, andamento ou qualquer outra componente rítmica de uma peça por parte de quem a ouve. Isto significa que o processo de composição das peças foi feito com base em fórmulas rítmicas construídas com o intuito de criar uma ilusão auditiva que, tal como qualquer ilusão, tem a capacidade de enganar ou confundir os sentidos e a mente humana. Pode ser mais fácil compreender o fenómeno da ilusão rítmica quando o compararmos com a ilusão de óptica, que pode surgir através da visualização de determinadas imagens, como por exemplo os Titchener Circles, imagem que representa duas circunferências com a mesma dimensão, mas que aparentam ter tamanhos diferentes (ver Fig. 1). Uma outra imagem conhecida por criar uma ilusão de percepção óptica é o Rubin´s Vase (Fig. 2), na qual estão representados um vaso e duas faces de perfil. Ao visualizar-se esta imagem, numa primeira instância, identifica-se apenas o vaso ou as duas faces, podendo levar alguns segundos até se encontrar a segunda forma contida na gravura, e até então não percepcionada (Donaldson, 2017).

 

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Fig. 1 - Titchener Circles (Retirado de https://en.wikipedia.org/wiki/Ebbinghaus_illusion)

 

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Fig. 2 - Rubin´s Vase (Retirado de https://www.researchgate.net/figure/Rubins-vase-sometimes-referred-to-as-The-Two-Face-One-Vase-Illusion-depicts-the_fig3_271842692

 

À semelhança dos Titchener Circles que parecem ter tamanhos diferentes, mas que na realidade têm o mesmo tamanho, ritmo, o tempo ou a pulsação podem também parecer ficar mais rápidos ou mais lentos, sem que na realidade isso aconteça. Por outro lado, à semelhança daquilo que sucede com a percepção das duas imagens no Rubin´s Vase, na música pode parecer que só existe uma métrica ou um compasso, quando na verdade existem dois ou até mais.

Os mecanismos de ilusão rítmica que utilizei na escrita das composições foram inspirados maioritariamente na música de Avishai Cohen, mais concretamente no álbum Gently Disturbed por Avishai Cohen Trio (2008). Grande parte da investigação e descoberta de como utilizar esses mesmos mecanismos ilusórios encontra-se alicerçada neste álbum.

As peças originais que compus para este projecto contêm inúmeros momentos de improvisação (e alguns até de improvisação livre) nos quais os mecanismos de ilusão rítmica surgem de forma pouco rígida e matemática para poder dotar os músicos de maior liberdade e espontaneidade no processo improvisativo. O intuito é o de permitir que surjam, através da experimentação, novas descobertas e sensações musicais que eventualmente não emergiriam de forma premeditada.

O objectivo deste projecto artístico é explorar e desenvolver mecanismos de ilusão rítmica quer na composição quer na execução, e também na improvisação, através da criação de certas expectativas, ilusões, e surpresas na mente dos ouvintes, levando os mesmos a terem diferentes percepções, falsas ou reais, do tempo e da métrica da música que está a ser escutada. Por exemplo, através das composições aqui apresentadas, poderá surgir a falsa percepção de aceleração ou desaceleração da pulsação, ou de compasso.

 

 2. “Espaço”

Esta peça foi inspirada em When It Rains” do álbum Largo (2002) de Brad Mehldau, mais concretamente na componente rítmica da composição. A melodia principal surgiu espontaneamente, ao cantar. Mais tarde, já sentado ao piano, compus a parte harmónica e completei o resto da melodia.

A peça encontra-se escrita em compasso 4/4 e inicia-se com um acompanhamento harmónico da mão esquerda do piano até à entrada da melodia executada com a mão direita, dobrada pelo contrabaixo e acompanhada pela bateria. Este início remete para a composição de Brad Mehldau, pelo que decidi explorar ritmicamente algo parecido. Em vez de utilizar um polirritmo de 3 contra 4, optei pelo 4 contra 5. A partir daí surgiu o acompanhamento harmónico do piano à quintina de colcheia, que, sozinho, sugere uma métrica 5/4. Só com a entrada forte da melodia em semínimas se sente a modulação métrica para o compasso de 4/4. Mais à frente explicarei com maior detalhe como introduzi a ilusão rítmica nesta peça.

A ideia inicial era o contrabaixo e a bateria acompanharem a melodia num groove estável em 4/4, à semelhança de When It Rains", criando um maior impacto no contraste com a introdução das quintinas. Esta ideia foi testada num ensaio de banda e em conjunto percebemos que não estava a resultar. Soava a algo demasiado complexo, confuso e pouco natural, talvez também por ser um polirritmo difícil de executar em contexto de grupo. Mesmo quando era bem executado continuava a não resultar musicalmente. Decidimos então procurar em conjunto alternativas para a parte do contrabaixo e da bateria, uma vez que a parte do piano não constituía problema. Este resolveu-se graças a vários ensaios de grupo que serviram apenas para explorar e experimentar novas alternativas de acompanhamento da melodia até chegarmos ao produto final” chamado Espaço”, que passo a analisar.

A estrutura de Espaço” é constituída por: introdução, tema (ABAB), solo de piano, solo de contrabaixo, tema (AB).

 2.1. Introdução

Esta peça encontra-se em 4/4 com armação de clave de si maior e inicia-se com uma introdução de piano de quatro compassos que se repete uma vez (fig. 21). A mão esquerda do piano apresenta-nos um ostinato harmónico à quintina de colcheia com uma ligeira acentuação de duas em duas, o que sugere ao ouvinte uma pulsação diferente (fig. 22). Para além disso, o ritmo harmónico encontra-se organizado em grupos de dez colcheias, sugerindo uma métrica de 5/4.

 

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Fig. 3 - Introdução de “Espaço”: realidade

 

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Fig. 4 - Introdução de “Espaço”: Ilusão

 

2.2 Tema (estrutura melódica: ABAB)

Em seguida, no compasso 5, a melodia principal do tema é introduzida pela mão direita do piano em uníssono com o contrabaixo, através de um polirritmo de 4 contra 5 (as quatro semínimas da melodia contra os cinco tempos do compasso sugerido anteriormente de 5/4). A entrada da melodia é acentuada pela bateria, reforçando a ideia de que houve uma mudança de tempo para uma pulsação mais lenta de quatro tempos em vez de cinco. Estamos perante uma modulação métrica do sugerido 5/4 para o compasso 4/4 que esteve sempre presente na mente dos músicos, o que significa que, já na introdução do ostinato do piano, nós músicos sentimos as quatro pulsações. A melodia é constituída praticamente na sua totalidade por semínimas, e o polirritmo formado entre as duas métricas está presente durante todo o tema, podendo sentir-se ambas as pulsações em simultâneo ou ora uma ora outra, tanto da parte do público como dos músicos.

Após os primeiros compassos, a bateria vai-se libertando das suas acentuações e vai adoptando um tempo indefinido, viajando entre ambas as métricas. O mesmo se aplica ao contrabaixo.

O tempo da peça é ligeiramente rubato e é liderado pelo piano, o que requer que os músicos tenham de se ouvir constantemente e com redobrada atenção. O piano, estando sempre a sugerir as duas pulsações em simultâneo (5/4 na mão esquerda e 4/4 na mão direita), é o elemento que rege o grupo, ou seja, é a componente comum às “viagens” rítmicas do contrabaixo e da bateria.

2.3 Solo de piano

Após a estrutura melódica A-B-A-B, inicia-se a secção de solo de piano, uma espécie de improvisação livre que tem apenas como ponto de referência dois acordes (B-7 e C#-7), sem qualquer métrica ou tempo pré-definido. Apesar de livre, a improvisação vem de um contexto rítmico e melódico que não será esquecido. Tal como nos standards de jazz, o improvisador tem sempre o tema e a melodia principal em mente.

2.4 Solo de Contrabaixo

Nesta secção o tempo é completamente livre e o contrabaixo faz um curto solo que acaba por servir enquanto interlúdio, para de seguida se voltar à introdução do ostinato de piano.

2.5 Re-exposição do tema

O tema da composição é tocado novamente (apenas com a estrutura A-B) com dinâmica mais forte e intensa, terminando na parte B da melodia com o acorde inesperado de B-7, que resolve de seguida em C#-7.

Resumidamente, o mecanismo de ilusão rítmica utilizado ao longo desta peça é a modulação métrica de 5/4 para 4/4 e vice-versa, sendo que no compasso 5 esta cria a ilusão de que a pulsação fica mais lenta.

 

3.   “Walkabout”

Esta composição surgiu também de uma improvisação livre ao piano e é baseada num ostinato rítmico de mão esquerda em colcheias. Inicialmente, a métrica era de 4/4, mas, naturalmente, um dos compassos ficou mais curto, que originou uma métrica de 15 tempos distribuídos da seguinte forma: 4/4 + 3/4 + 4/4 + 4/4. Com os ensaios de grupo, o ritmo executado pela bateria foi-se alterando até surgir a ideia de um acompanhamento rítmico mais alargado” em 4/4, sobrepondo-se aos 15 tempos da estrutura harmónica. A meio da composição surge uma secção na qual as colcheias passam a ser acentuadas de três em três, sugerindo uma métrica de 3/8, e uma subsequente alteração da pulsação.

A estrutura de Walkabout” é constituída por: introdução, tema (ABAB), secção C, secção D, solo de piano, secção C, solo de contrabaixo, secção D.

3.1. Introdução

A composição inicia-se com uma introdução de piano através de um ostinato de mão esquerda, configurando uma métrica de 15 tempos distribuídos conforme demonstrado na figura 5. A tonalidade é a de mi bemol maior e a harmonia é bastante simples e diatónica: quatro acordes que se mantêm ao longo de quase toda a estrutura. A bateria e o contrabaixo vão sugerindo a pulsação progressiva e lentamente, preenchendo a introdução com um ambiente sonoro calmo como preparação para a entrada da melodia na secção seguinte.

 

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Fig. 5 - Introdução de piano em “Walkabout”

 

3.2  Tema

A melodia do tema é executada pela mão direita do pianista, enquanto a esquerda mantém o seu ostinato. Trata-se de uma melodia simples e diatónica que se repete mais uma vez: esta corresponde à secção A. Com o início desta secção, o contrabaixo e a bateria estabelecem um groove pop respeitando a métrica. Por vezes, a bateria executa um ritmo típico da música pop com o bombo no primeiro tempo e a tarola no terceiro, mantendo-o sempre em 4/4, o que configura uma sobreposição métrica do 4/4 da bateria com o ritmo harmónico do contrabaixo e do piano em 15/4. O ritmo da bateria vai alternando entre 15/4 e 4/4. A figura 6 ilustra um exemplo daquilo que poderá acontecer nesta polimetria, sendo que o baterista tem a liberdade de executar as suas próprias variações deste conceito rítmico. Esta sobreposição métrica cria uma ilusão parecida com a de Rubins Vase: as duas figuras numa só, o vaso e as faces, ora se vê um ora outro, ora se sente o 15/4 ora o 4/4 da bateria.

 

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Fig. 6 - Exemplo de um ritmo de bateria em “Walkabout”

 

São necessários os 16 compassos representados na figura anterior para que o bombo da bateria volte a coincidir com a primeira nota do ostinato de piano, onde o ciclo recomeça.

Segue-se uma secção B composta por uma melodia ainda mais simples, tal como um refrão de uma música pop. A sobreposição métrica provocada pela bateria continua a subsistir durante todo o tema. Em seguida, a forma regressa para uma secção A um pouco diferente: a secção A. O padrão rítmico da melodia é exactamente o mesmo que o da secção A, assim como o desenho melódico. O que difere são algumas notas que passam a ser alteradas, afastando-se da tonalidade de mi bemol maior e que colidem com a harmonia proveniente do ostinato que se mantém igual. Nesta secção Aexiste uma avoid note (si) que, em conjunto com as outras notas, torna a melodia um pouco misteriosa e sombria. Nesta parte, a bateria e o contrabaixo desconstroem totalmente o ritmo contribuindo com efeitos sonoros e ritmos instáveis para a elaboração deste ambiente mais sombrio e tenso que só é resolvido com a entrada, novamente, do refrão” (secção B).

3.3 Secção C

Esta secção surge na sequência da anterior e tem a mesma harmonia. O ostinato do piano mantém-se, sendo que agora um outro, feito com a mão direita do pianista, lhe é sobreposto. Este novo ostinato tem o mesmo desenho melódico do refrão, mas em colcheias agrupadas de três em três, conforme demonstrado na figura 7. O contrabaixo continua a acompanhar o ritmo harmónico inicial, enquanto que a bateria acentua estes grupos de três colcheias, como se modulasse para uma métrica de 3/8, criando a ilusão de uma nova pulsação mais rápida que a original, ambas representadas nesta figura. Esta secção potencia um crescimento da intensidade e o efeito ilusório cria ainda mais tensão, tensão essa que finalmente é libertada no início da próxima secção.

 

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Fig. 7 - Secção C de “Walkabout"

 

3.4 Secção D

Esta secção surge com um ambiente mais calmo e silencioso, no qual o compasso passa a ser de 4/4. Emerge uma nova melodia e harmonia com uma dinâmica que começa em pianissimo e que vai crescendo muito lentamente com a entrada de outro ostinato à colcheia, até finalmente chegar a uma dinâmica de forte, terminando numa suspensão em lá maior. Este acorde, que acaba por ter a função de dominante através de uma substituição tritónica, fica suspenso até resolver em lá bemol maior, o primeiro acorde da peça, dando início ao solo de piano.

3.5 Solo de piano e secção C

O solo de piano desenvolve-se na estrutura harmónica da secção A, já de volta à métrica de quinze tempos, conduzindo a peça em direcção à secção C, que é tocada novamente. Na passagem do solo para o interlúdio, pode antecipar-se a modulação métrica.

3.6 Solo de contrabaixo e secção D

O solo de contrabaixo surge após o interlúdio, já na secção D, apenas nos dois primeiros acordes que são repetidos várias vezes pelo piano até ao final do solo. Segue-se o ostinato da secção D, no decurso do qual se verifica um crescimento da dinâmica e intensidade, até ao acorde final de lá maior. De uma forma resumida, o mecanismo de ilusão rítmica utilizado nesta peça é o de modulação métrica: durante o tema, o ritmo da bateria cria a ilusão de uma métrica de 4/4, por oposição à métrica real de 15/4, e na secção C cria-se a ilusão de que a pulsação fica mais rápida.

 

4.  “Preso Por um Fio”

Esta composição tem como base um ostinato de piano em 9/8, presente durante praticamente toda a peça (fig. 33)e foi inspirada numa estética musical que se pode encontrar em muitas das composições de Avishai Cohen. Em Preso Por Um Fio”, a componente rítmica é claramente mais evidenciada do que as componentes melódica e harmónica. A métrica em 9/8 pode ser subdividida de várias formas (por exemplo 5+4 ou 3+3+3). É este conjunto de possibilidades que é explorado ao longo da peça, através da criação da sensação de diferentes pulsações. Nesta composição, é também trabalhado o conceito de ilusão rítmica na improvisação através do mecanismo de deformação rítmica, que será explicado na análise que se segue.

A estrutura de Preso Por Um Fio” é constituída por: introdução, tema (ABAB), interlúdio, secções C e D, solo de piano, secção D.

4.1 Introdução

A peça inicia-se com o ostinato de piano representado na figura 8 e aos poucos o contrabaixo e a bateria vão surgindo com pequenos apontamentos, instalando um ambiente calmo que se vai intensificando até à entrada do tema. O ostinato está em compasso 9/8 e subdivide-se em grupos de 5+4 colcheias, como se pode verificar na figura em baixo.

 

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Fig. 8 - Ostinato de piano em “Preso Por Um Fio”

 

4.2 Tema

Na secção A do tema, a bateria instala um ritmo que acentua os grupos de 5+4 colcheias, assim como o contrabaixo, ao dobrar parcialmente a mão esquerda do piano (figura 9). Nesta fase é difícil sentir uma pulsação devido à presença de uma métrica irregular de 5/8 + 4/8.

 

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Fig. 9 - Secção A de “Preso Por Um Fio”

 

Segue-se a secção B na qual o contrabaixo desempenha uma linha melódica em semínimas pontuadas, ritmo esse que é também acentuado pela bateria. O piano quebra o seu ostinato e fornece apenas uma base harmónica para a melodia do contrabaixo. Esta linha melódica executada pelo contrabaixo sugere uma pulsação mais estável e regular devido a uma nova subdivisão da métrica 9/8 em grupos de 3+3+3 colcheias. Dá-se assim uma modulação rítmica de 9/8 (5+4) para 9/8 (3+3+3), que também pode ser vista como um 3/4 com subdivisão à tercina de colcheia. A pulsação altera-se e o tempo parece diferente, mas a métrica mantém-se. Surge e então a primeira ilusão rítmica desta peça. A modulação rítmica volta a acontecer no retorno para a secção A e, de seguida, para a secção B novamente.

4.3  Interlúdio e secções C e D

No final da secção B, o ritmo intenso criado pelo grupo desfaz-se até iniciar-se um interlúdio de piano em rubato. De seguida, inicia-se a secção C, na qual o trio executa um ritmo parecido com o da secção A, com a excepção de que alguns compassos têm uma colcheia a mais, formando assim a métrica de 10/8, conforme demonstrado na figura 10.

 

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Fig. 10 - Excerto da secção C em “Preso Por Um Fio”

 

Surge então a secção D em 9/8 (3+3+3) que se sente como um 3/4 com subdivisão à tercina de colcheia. A bateria desempenha aqui um papel rítmico fundamental para a criação da segunda ilusão desta peça, sugerindo uma nova pulsação através de uma modulação métrica, como se pode observar na figura 11.

 

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Fig. 11 - Modulação métrica na secção D de “Preso Por Um Fio”

 

O compasso de 3/4 é dividido ao meio pela bateria, criando-se a ilusão de estarmos perante um tempo mais lento em 2/4. A secção rítmica vai então alternando entre as três métricas (9/8, 3/4, 2/4).

Esta secção conta ainda com uma melodia que é partilhada entre o piano e o contrabaixo, e uma estrutura harmónica que será a mesma empregue no solo de piano.

4.4 Solo de piano

No solo de piano existe uma considerável liberdade rítmica, onde são explorados diversos mecanismos de ilusão improvisados de forma espontânea. Vou enumerar alguns destes mecanismos que poderão ou não ser utilizados, uma vez que na improvisação tudo pode acontecer. Em primeiro lugar, poderão surgir durante o solo as modulações métricas de 9/8 para 3/4 e de 3/4 para 2/4, tal como representadas na figura anterior.

Em segundo lugar, irei referir as várias deformações rítmicas que poderão ocorrer ao longo desta secção e que terão como base a primeira métrica deste tema: 9/8 (5+4). Esta subdivisão à colcheia em grupos de 5+4 será agora representada por uma nota longa e outra ligeiramente mais curta, sendo este padrão rítmico o mote para as deformações rítmicas que se seguem nas figuras 12 e 13.

O processo deste mecanismo rítmico consiste na alteração das subdivisões de cada uma das notas de forma a que continue, neste caso, a existir uma nota longa seguida por uma mais curta. Como foi anteriormente referido neste relatório, a relação entre as figuras rítmicas e as suas deformações não é proporcional, e é por isso que o padrão das notas (longa + curta) vai ficando cada vez mais reduzido (figura 12) ou mais longo (figura 13). Na figura 12 executam-se as substituições das subdivisões sempre em relação à primeira nota (longa), ou seja, a sua subdivisão de 5 colcheias passa a ser de 4 colcheias, ocupando o mesmo espaço de tempo, e a subdivisão de 4 colcheias da nota curta passa a ser de 3 colcheias, ficando o padrão rítmico sucessivamente mais curto. Neste caso seria necessário a subdivisão da nota mais curta passar a 3,2 colcheias para que o padrão tivesse a mesma duração. Esta diferença de 0,2 colcheias entre o padrão original e o deformado é quase imperceptível pelo ouvinte, principalmente se as colcheias forem mais rápidas. No caso da figura 13, pode observar-se exactamente o oposto, ou seja, a deformação rítmica é sempre executada em relação à segunda nota (curta) do padrão, o que permite que este fique sucessivamente mais lento, ou seja, mais longo à medida que vão sendo executadas as várias deformações.

 

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Fig. 12 - Deformação rítmica executada em relação à nota longa

 

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Fig. 13 - Deformação rítmica executada em relação à nota curta

 

Uma combinação entre as figuras 12 e 13 pode também ser um caminho possível durante esta secção de solo de piano. Também se pode observar nestas figuras que a métrica se vai alterando, tal como é suposto acontecer ao utilizar-se este mecanismo rítmico. Este processo que acabo de descrever cria a ilusão de que o padrão rítmico (nota longa + nota curta) representado nas figuras se mantém igual, apesar das mudanças de subdivisão e de métrica.

Por último, a liberdade e intuição rítmica estará sempre presente na improvisação, permitindo que se descubram novos caminhos que poderão ser mais difíceis de matematizar ou teorizar.

Todos estes conceitos poderão surgir no solo de piano, sem nenhuma ordem específica ou planeamento prévio. Todos eles fazem parte da bagagem musical de cada músico desta formação e poderão ser musicalmente sugeridos por qualquer um dos elementos do grupo a qualquer momento da improvisação.

De forma resumida, os mecanismos de ilusão rítmica utilizados foram a modulação métrica durante o tema e a deformação rítmica durante o solo de piano. A primeira cria a ilusão de uma mudança de pulsação e a segunda (deformação) cria a ilusão de que um certo padrão rítmico se mantém igual, quando na realidade este vai ficando ligeiramente mais curto ou mais longo, dependendo do rumo da improvisação e da forma como este mecanismo é utilizado.

 

5. Conclusões:

Os resultados obtidos através desta projecto de investigação artística resultaram da estruturação de um conjunto de mecanismos de ilusão rítmica e a sua aplicação prática quer em composições originais, quer na execução das mesmas. Estas três composições são o culminar de todo este trabalho de investigação. Através delas e da sua execução, pretendo contribuir com algo de novo no âmbito do jazz, nomeadamente em termos da exploração do conceito de ilusão rítmica na improvisação.

A investigação sobre este conceito e a procura por entender e desenvolver os seus mecanismos de forma musical e criativa veio certamente enriquecer-me como músico, compositor e improvisador. Ao longo de todo o processo de criação deste projecto artístico tenho verificado os benefícios da prática musical dos mecanismos de ilusão referidos neste trabalho como o deslocamento rítmico, a modulação métrica e a deformação rítmica, não só no contexto da composição, como também no contexto de performance musical, e sinto-me musicalmente mais maduro, ágil e criativo ritmicamente.

Conforme já referido anteriormente, ao pesquisar sobre ilusão rítmica, e ao analisar toda a bibliografia consultada, deparei-me com falta de informação sobre este tópico e sobre os seus métodos e mecanismos de utilização. Nesse sentido espero que este trabalho possa contribuir para colmatar esta lacuna no que diz respeito à publicação de literatura académica sobre ilusão rítmica.

Como propostas futuras de investigação nesta área, poderão desenvolver-se novos projectos que adoptem como objectivo compreender a forma como os ouvintes reagem aos mecanismos de ilusão rítmica, ou por outras palavras, qual o impacto que os diferentes métodos de utilização da ilusão rítmica podem ter nas audiências.

 

Referências

Cohen, A. (2008). Avishai Cohen Trio: Gently Disturbed. Razdaz Recordz

Donaldson, J. (July 2017), Rubin's Vase in F. Macpherson (ed.), The Illusions Index. Retrieved from https://www.illusionsindex.org/i/rubin-s-vase

Mehldau. B. (2002). Largo. Warner Bros.

 

Data da última alteração: segunda, 15 junho 2020 10:59

Vasco Pimentel, pianista português nascido a 31/01/1994.
Desde muito jovem começou a aprender piano clássico, tendo completado o 8º grau de piano no Instituto Gregoriano de Lisboa em 2013. Manifestou o seu interesse por jazz aos 14 anos de idade e teve como professores de piano João Paulo Esteves da Silva, Óscar Graça, Ana Araújo, Dan Hewson e Paula Sousa.
Estudou na Escola de Jazz Luis Villas Boas e completou o curso de Mestrado em piano-jazz na Escola Superior de Música de Lisboa com João Paulo Esteves da Silva.
Tem actuado com várias formações de Jazz e World Music tendo já pisado o palco de festivais importantes como o “EDP Cool Jazz” ou “Dias da Música” no CCB, com os seus mais recentes projectos Vasco Pimentel Trio e “Jugalbandish”.

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